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domingo, 24 de agosto de 2014

Like a selfie


E então, com uma medida provisória votada em tempo recorde, conseguiram acabar com a civilização ocidental estabelecida. Nenhuma guerra foi declarada; nenhum acordo foi revogado; nenhuma sanção comercial restritiva viu a luz do dia; nada disso aconteceu. O que o congresso votou e o presidente assinou — num Universo paralelo ao nosso — foi a imediata proibição das selfies, conhecidas outrora e numa outra dimensão como autorretratos (e, nessa dimensão, curiosamente, ainda existiam os hifens).

O colapso foi crescente: as camadas da sociedade foram ruindo num impressionante efeito dominó. Claro que, nesse Universo paralelo, distante do nosso, alguns efeitos parecem ser ampliados; certas ações parecem produzir reações desproporcionais — ou pelo menos é o que dizem os estudiosos. Dessa forma, uma mera proibição que à primeira vista poderia parecer desimportante, acabou por atacar as bases de todo um ecossistema, como ferrugem numa secular ponte de ferro. Também é necessário pontuar que, inicialmente, o governo não ligou os pontos correta e imediatamente. Nenhum estudioso, é óbvio!, poderia fazê-lo; e somente depois de muito tempo puderam chegar ao verdadeiro marco inicial.

O fato é que os suicídios começaram instantaneamente. O sistema público de saúde chegou a fazer uma vultuosa contratação emergencial de psicólogos, mas muitos deles acabaram também por se matar em seguida. Já não havia motivo para existirem, e nem era a falta de pacientes: era porque já não podiam se autoafirmar; provar sua existência, beleza e importância da única forma que sabiam! Qual seria a razão de conquistar um diploma, se não para se fotografar vestido em seu novo uniforme? E depois em seu consultório, e depois ao lado de seus clientes? Ou em casa — e isso valia para os psicólogos e para os pacientes —, qual a razão de cozinhar um belo prato, feito com base numa receita de um grande chef francês, se não podiam se fotografar ao lado dele? E ir à academia, ao médico, ao supermercado, ao hipermercado e ao minimercado? Qual a graça de ir a Paris ou Foz do Iguaçu se não podia “postar uma selfie” lá? E depois, logo em seguida, em Puerto Iguazu, porque atravessou a ponte, claro, e precisava provar que estivera ali? Já não parecia haver um motivo para viver; já não haviam mais likes. Muitos quebraram seus espelhos, porque a existência desses objetos já não fazia sentido, privados do clímax de seus dias que era o auxílio na realização das selfies. Nesse Universo paralelo, praticamente distante do nosso, noventa por cento da população era refém dos selfies — e dos likes —, e a reabilitação de tal dependência não era possível… Não era, de fato, sequer cogitável. O vício não dava tréguas: os atropelados postavam selfies nas macas; os amantes postavam selfies nus ainda nas camas; as modeletes postavam selfies com todos os looks do dia… Nesse Universo paralelo, quase distante do nosso, até os cachorros e gatos domésticos já estavam postando selfies! Donde se pode, assim, avaliar o avançado estado de degeneração a que essa sociedade chegara.

Outro fato curioso pertinente a esse Universo paralelo (acho que diverso do nosso…) é que tal autoextermínio em massa — se é que essa expressão existe — levou às cabeças das mídias um grupo de darwinistas que defendia a tese de aquilo ser, na verdade, apenas mais uma faceta da seleção natural. Parece-nos, claro, que tal hipótese deve ser brutalmente rechaçada, uma vez que tais indivíduos foram nada menos que destruídos, devastados por tal ato tão imprudente dos políticos, que ainda tinham a audácia de se defender dizendo que “tudo o que haviam feito era para recolocar a sociedade novamente nos eixos da sanidade”. Realmente… Como acreditar em tal discurso, já que os próprios políticos perdiam mais tempo postando selfies nos plenários e congressos do que efetivamente trabalhando? (Ou ainda, numa análise mais racionalista: como acreditar em políticos que se preocupavam com o bem da sociedade?) Nesse universo, talvez outro que não o nosso, os engenheiros erguiam prédios pelos likes; os atletas batiam recordes pelos likes; os sucessos das conquistas amorosas — ou não — eram medidos pelos likes… E a selfie era, para todos, o meio quase que divino de levar ao mundo o conhecimento de tais realizações.

Nesse Universo, que a esta altura eu já nem sei se é ou não o nosso, as aparências valem mais do que a realidade, e talvez tenha sido realmente necessário um evento de extinção em massa para recolocá-lo nos eixos. O problema é que, mesmo com a internet paralisada, corre por aí um boato… Bem, um boato de que o fim da era de suicídios foi marcado por uma selfie em grupo — daquelas, imitadas à exaustão, dos atores na cerimônia do Oscar — com os revolucionários que explodiram o Congresso Nacional, cheio de políticos, e esse mesmo prédio, em escombros e chamas, ao fundo…

Flash forward, de Robert J Sawyer


Flash forward é um dos livros mais legais que li, em se tratando de ficção científica. Não gosto de ficar repetindo a sinopse dos livros na postagem, ainda mais quando deixo o link para o Skoob, mas, vá lá; ele conta a história de um acidente onde a consciência das pessoas é deslocada 21 anos para o futuro, por 2 minutos e alguma coisa — evento a que dão o nome do título do livro. Acontece que, enquanto isso tem curso, as pessoas ficam inconscientes, e muitas delas — muitas! — estão em atividades arriscadas, como descendo de escadas e viajando de avião... E o que muitas delas também veem nesses anos futuros não é exatamente o que elas desejavam ter visto, e é em torno dessas pessoas que gira a trama do livro.

Gostei bastante como a trama foi desenvolvida, assim como os personagens, e o autor não teve receio de tomar as atitudes que julgava necessárias para o andamento realista da trama, e isso é um puta ponto a favor. Odeio soluções forçadas, adocicadas, para que tudo dê certo no fim. A vida simplesmente não é assim, nem tudo têm de dar certo. Os personagens não são os mais legais, em termos de "pessoa" mesmo, mas isso também confere certa veracidade ao livro.

Agora uma coisa legal de se ver/ler, são as "previsões do futuro" que o autor acaba fazendo, como a descoberta do bóson de Higgs, o presidente norte-americano negro (o livro foi escrito em 1999, mas se passa em 2009) e outras coisinhas que eu não me lembro agora; ele erra também, claro, em outras coisas, como o destaque que ele dá aos videocassetes, já praticamente aposentados por essa época, mas demos  a ele também o desconto necessário, né? (Pelo menos não são aquelas fitas perfuradas do Asimov, hehe.)

Achei, enfim, uma obra muito divertida de ler, hard sci-fi mesmo, com toda aquela reflexão que o evento central deve causar nesse estilo de literatura, e bem escrito como muito poucos que chegam aqui no Brasil — inclusive, uma coisa a se notar é que esse autor é bastante prolífico, e por causa da insuficiente chegada desses títulos aqui em nossa terra, eu tenho que dizer que o desconhecia totalmente.

Claro que o panorama está melhorando de uns anos para cá, com casas editoriais trazendo cada vez mais títulos interessantes, mas tô vendo que vou é ter que abrir minha própria editora, para traduzir essas pérolas da fantasia, terror e ficção científica — como as obras Ancillary justice de Ann Leckie; La corte de los espejos de Concepción Perea; The snow queen de Joan D. Vinge; e as Paprika e Hell de Yasutaka Tsutsui; como muitas outras mais antigas e para nós desconhecidas — que dificilmente chegam/chegarão por aqui...

Enfim; ««««/5


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Um trecho marcante de Érico Veríssimo


Ana Terra sacudiu a cabeça lentamente, mas sem compreender. Para que tanto campo? Para que tanta guerra? Os homens se matavam e os campos ficavam desertos. Os meninos cresciam, faziam-se homens e iam para outras guerras. Os estancieiros aumentavam suas estâncias. As mulheres continuavam esperando. Os soldados morriam ou ficavam aleijados. Voltou a cabeça na direção dos Sete Povos, e seu olhar perdeu-se vago, sobre as coxilhas.


domingo, 3 de agosto de 2014

A morte da luz, de George R R Martin


A morte da luz é, para mim, a melancolia retratada com palavras. Creio ser mesmo essa a palavra que melhor o define, e o título é, de fato, o resumo perfeito de Worlorn, o mundo onde se passa a trama. Um mundo que se afasta cada vez mais de seu sol — ou sóis, no caso —, com habitantes que se afastam cada vez mais de seus sonhos.

Dirk t'Larien é o protagonista assombrado por seu passado, que se torna seu presente e o assombra ainda mais quando joga em sua cara sua falta de futuro. Por mais diferente que seja, esse livro me lembrou o A estrada — em sua melancolia e falta de esperança. São tramas onde o que se têm está exposto à sua frente, e pouco ou nada se pode esperar de novo; assim, têm-se que viver um novo dia sem qualquer expectativa — ou mesmo sem qualquer alegria.

George Martin mostra, já nesse seu primeiro livro, que a qualidade de sua narrativa não cairia no mar da mediocridade. Para quem consegue imergir no mundo que ele apresenta, o que acaba encontrando é uma paisagem idílica; vazia, sim, mas cheia de poesia, e um reflexo do que vai à alma dos personagens principais.

Não há um antagonista, não há romance, não há clichês. Não há um protagonista heroico, e não há uma mocinha em perigo. O que há é um background extremamente bem construído, para os personagens e para os ambientes, para a história e para as justificativas, e há também aquele tradicional jogo que o autor faz com nossos sentimentos, em que num dado momento você se pega sofrendo pelo "antagonista" e desejando dar um tiro na cabeça do "par romântico" do "herói".

Dizendo assim, pode até parecer ter sido uma leitura ruim, mas muito pelo contrário: foi uma das melhores que fiz no ano. É errôneo imaginar que existe prazer apenas na beleza e na alegria; a melancolia é um dos sentimentos que mais nos coloca em contato com nosso verdadeiro "eu", e um dos mais profundos que podemos experimentar. Ainda que o final não seja uma unanimidade entre os que leram o livro, para mim foi perfeito: não há o que detalhar. Não importa, simplesmente. A morte da luz é apenas o retrato do fim — do fim de algumas histórias, do fim de algumas vidas.


««««/5