Postagem em destaque

Links para a obra do Rahmati

Nesse post você tem acesso a todas as minhas obras publicadas :) Os links para compra / leitura / download estão embaixo de cada imagem. ...

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Especial natalino, de Clara Madrigano


Clara Madrigano já começa sua novela Especial natalino avisando, com a primeríssima frase do e–book: Esta não é uma história com um final feliz. E eu já comecei a gostar por isso, hehe. E nos primeiros minutos de leitura por outros dois aspectos: pela cidade onde se passa a trama — Amberline — ser sombria e por uma das personagens principais se chamar Cheryl — e ambos os aspectos me fizeram lembrar de uma história do mundo dos games que gosto muito: Silent Hill. Isso me motivou muito a continuar a leitura. Isso e outras coisas.

(Resenha originalmente publicada no site A Hora do Chá)

Uso o aplicativo do Kindle para celular essencialmente para ler contos e revistas de contos. Não gosto de ler narrativas longas lá (me cansam, deve ser por causa da telinha, que não é e–ink como o e–reader Kindle mesmo), além de preferir com folga os livros físicos. Sempre dou chance a escritores iniciantes que autopublicam seus contos e novelas, mas quando passo duas, três páginas, e percebo que a) ou o autor não domina a língua ou b) a história é clichê demais eu abandono sem dó e ainda classifico com poucas estrelinhas na Amazon. Clara Madrigano passou ao menos em um desses dois itens: sua escrita é ótima. Mesmo que a história possa ser clichê (não vou dar spoilers aqui), a narrativa é tão climática e bem construída que isso se torna uma questão menor. A novela saiu pela Draco, e não é por eu ser um escritor publicado por essa editora que eu vou dizer que “já que saiu por uma editora é garantido a obra ser boa”. Já li coisas dessa e de outras editoras que perdem de lavada em quesito qualidade de autores autopublicados. Mas, como eu disse, Especial natalino não sofre desse mal.

Na trama: Dois de três filhos — Justin e Brooke — de um casal típico do interior norte–americano estão voltando para casa para a típica ceia de Natal. Cheryl, a terceira filha, sempre morou lá, apesar de não gostar da cidade (mas não ter tido o brio de sair também). Essa terceira filha é escritora, e tem um blog onde analisa criticamente (e destrói) os famigerados romances eróticos. Coisas estranhas, no entanto, começam a acontecer quando a mãe pede a Justin que vá ao mercado buscar um ingrediente que faltava — e do lado de fora ele encontra uma ex–professora. A partir daí, surge um mistério muito bem narrado, num timing gostoso, com as coisas aos poucos se desenrolando e sendo apresentadas com muita habilidade.

Especial natalino é, sem dúvida, uma novela muito boa, e com certeza deixa um gostinho de quero mais — se não pelo cenário, ao menos por novas produções da autora (que agora está montando uma editora que parece ser bem promissora, a Dame Blanche).

Agora, quanto a ser ou não uma história com final feliz, cabe a vocês a tarefa de ler e descobrir.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

A cidade & a cidade, de China Miéville

(Resenha originalmente publicada no site A Hora do Chá)

Creio que existam dois tipos de escritores: aqueles que pegam temas e/ou histórias já conhecidas e dão sua visão particular — e não estou falando de “recriar histórias”; estou falando de usar temas e sentimentos e acontecimentos comuns e dar a eles sua visão toda pessoal — e existem aqueles que criam algo totalmente novo.

A cidade & a cidade, de China Miéville, é uma criação de um desses escritores do segundo tipo — e uma das histórias mais impressionantemente criativas que li nos últimos tempos. Pode até já existir algo semelhante ao que é nela apresentado, mas eu confesso desconhecê–lo. E isso, para um leitor ávido como eu, acreditem, é grande coisa. Mas o que tem de tão original assim?, vocês devem estar se perguntando.

Acontece que a trama se passa em Besźel e em Ul Qoma. Ao mesmo tempo, porque são a mesma cidade. Ocupando o mesmo espaço físico. E é crime ver a outra cidade. Aliás — não ver é impossível, claro; então, as pessoas têm que desver. Desouvir. Mais ou menos como “fazer de conta” que não está vendo. Agora imagine a dificuldade de perceber o que é de uma cidade e o que é da outra… Se você for analisar bem, perceberá que isso tem grande chance de dar merda — e é claro que dá; senão, não haveria livro, certo? E que baita livro! Porque, além disso tudo — além de ter uma baita premissa de ficção científica —, ele é um soberbo livro policial! Sim, policial: como resolver o problema de uma mulher que aparece morta numa área total de Besźel (porque existem áreas cruzadas de ambas), sendo que ela morava em Ul Qoma? Só colocando em cena um detetive fodão como o das histórias clássicas policiais.

E esse homem é o inspetor Tyador Borlú, de Besźel.

Contudo, se fosse só isso, estaria fácil. Ele tem que tomar extremo cuidado para não fazer brecha em sua investigação — ver, ouvir ou sequer notar algo da outra cidade — e, assim, tentar evitar ser pego pela força quase mística conhecida como Brecha, que fiscaliza o cumprimento das regras da separação das cidades. A brecha é o crime maior em Besźel/Ul Qoma — maior do que matar, roubar ou traficar. Faça tudo isso, mas não atravessando de uma cidade para a outra ilegalmente — o que pode ser simplesmente atravessando uma rua ou jogando uma migalha para um animal que está brutopicamente perto (ao seu lado, mas na outra cidade).

A cidade & a cidade é um livro muito bem escrito, ainda que seja mal escrito, e muito bem traduzido em sua péssima tradução. Explico: é como se o inspetor Borlú tivesse narrado sua história no idioma de sua cidade, o besz, e depois traduzido ele mesmo para o inglês, língua que ele não domina — então, certos erros são esperados. Assim, Fábio Fernandes faz uma excelente má tradução para o português, respeitando esses enganos linguísticos do personagem principal/narrador e respeitando a genialidade do escritor China Miéville.

Inclusive, vou ler mais um livro dele para ter certeza — provavelmente o Estação Perdido —, mas Miéville parece ter grandes chances de entrar no seleto rol que inclui autores como Chuck Pahlaniuk e Haruki Murakami: aquele dos quais se tem a certeza de que qualquer obra que se ler será perturbadoramente deleitosa, que fará repensar seu próprio cotidiano e que terá o selinho de garantia de “seu tempo não será perdido”.

Bem; talvez sua sanidade, mas não o seu tempo ;)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Conto: Uma recorrente decepção


Escondido num canto, ouvindo a respiração pesada e os passos trovejantes do monstro, ele evitava pensar no pior. Era inevitável, claro. A cada resmungo, a cada irritação, a cada soco em algo ou em alguém o teto sobre ele tremia e pó descia sobre seu chapéu. Fora ele quem se prontificara a —não; na verdade, quem insistira em— ir atrás dela. Não que não confiasse no Escolhido, mas podia confiar desconfiando. Se recusava ao raciocínio fácil de que isso implicava ficar esperando e torcendo apenas. Claro que havia um ou outro que ajudava mais ativamente, mas, ainda assim, dependiam exclusivamente do sucesso dele; se ele parasse, todos parariam junto.

Menos ele.

Os guardas esqueléticos passaram, lanças pontiagudas em mão. Ele tinha uma janela de poucos minutos antes que voltassem, então se lançou para fora do esconderijo. O ar estava quente e úmido, difícil de respirar. Correu o mais rápido que suas curtas pernas permitiam, evitando encostar nos dutos metálicos que fritariam sua pele ao menor resvalo. O líquido quente como lava corria em direção às máquinas infernais que eram construídas em segredo nos andares do subsolo, atraentes para o seu intelecto e seu senso investigativo, mas sua prioridade era clara, e ele não podia se desviar dela. Não agora, ao menos.

Quase não conseguiu passar a tempo de não se esturricar na armadilha giratória, automática quando os guardas não estavam por perto. Queimou uma beirada da jaqueta, mas conseguiu se jogar por baixo da morte que descia em sua direção, escorregando pelo chão e ralando as costas. Ao menos estava agora no último setor da fortaleza.

Era impressionante como até os guardas tinham medo do chefe, pensou, sorrindo (mas de nervoso) — aquele setor estava praticamente deserto. Pelo duto do teto em que ele descera, podia perceber que só haviam dois guardas, e no extremo oposto ao reduto do chefão, o mais longe possível dele. Sabia que o todo–poderoso do mal tinha sua entrada secreta para o próprio salão, mas, pela agora ausência de gritos e tremores, parecia certo que ele não estivesse lá.

Aproveitou–se de um curto instante em que os guardas não estavam olhando e deixou–se cair no piso de pedra cinzenta, ocultando–se em uma reentrância. Ele conhecia o mapa da fortaleza, então esgueirou–se pelo chão irregular, que emulava uma caverna natural. Arrastou–se os últimos metros e pendurou–se por debaixo da ponte que dava acesso ao salão final, suando em bicas porque, afinal, como todo bom dragão do mal o tal gostava de reforçar a mensagem — e nada melhor para isso do que cercar seus aposentos com um lago daquele líquido parecido com lava. Chegou ao final extenuado, mas não podia perder tempo. Saltou para a plataforma onde ficava a enorme porta de madeira e ferro, mas… não havia nada visível que a abrisse. Escondido, quase perdeu as esperanças, mas acabou deixando o pânico dar lugar a uma risada genuína — tinha se lembrado de que o mecanismo para abrir a porta estava oculto na estrutura do final da ponte. Levantou–se para avançar novamente até lá… e derrubou a lanterna que estava no bolso interno da jaqueta. Prendeu a respiração, mas como ele não estava lá, podia…

O QUE FOI ISSO?!”, grunhiu o “ele”, facilmente audível do outro lado da colossal porta. O susto fez com que o infiltrado paralisasse. Alguém respondeu algo, mas essa fala não foi inteligível. O infiltrado até respirava com cuidado. “É ÓBVIO QUE É UM BARULHO, IMBECIL.” Apesar da voz de trovão, ele não estava gritando, nem vindo abrir a porta para checar. Estaria… preocupado? Teria o Escolhido chegado, já? O infiltrado olhou ao redor, mas não viu nada que o sugerisse. “LEVE–A”, ouviu novamente. “EU MESMO VOU… CUIDAR DISSO.” E a porta se abriu, rangendo como estivesse sendo arrancada das profundezas. O infiltrado mal teve tempo de se jogar de lado antes que o imenso dragão passasse por ele. Ficou ali, de guarda, na ponte, de costas para ele. Uma ideia então passou pela cabeça do infiltrado: e se…?

Jogou–se por debaixo da porta no último instante, preparado para lutar com o que quer que o aguardasse ali, mas tudo o que viu foi o vestido dela desaparecendo por uma passagem secreta, que se fechou na parede de pedra. Tateou, esmurrou, mas nada aconteceu — ela se fora. Tão próxima… Já ouvia os sons da luta do lado de fora, mas que diferença fazia? Sentou–se no chão, apenas, respirando, de olhos fechados, reunindo os cacos…

Mas esses cacos eram orgulhosos. Ele não daria ao Escolhido a satisfação de descobrir que ele também tinha chegado atrasado. Que esse peso fosse maior para o Escolhido. Encontrou o grande saco que fora usado, certamente, para raptar a princesa, e meteu–se lá dentro. Depois que o rugido foi ouvido, depois que a porta foi erguida, e depois que o saco foi aberto, suas escoriações e rasgos confirmaram o panorama.

— Obrigado — disse então, vendo a decepção nos olhos do Escolhido. — Mas nossa princesa está em outro castelo.



domingo, 5 de fevereiro de 2017

Um trecho marcante de José J Veiga


Acontece que nem Esmeralda nem Horaciano estavam perdendo o sono por causa das leituras de César. Que muito alegravam também a tia Basília. Que adianta a pessoa aprender a ler para depois virar as costas aos livros? Basília mesma tinha em casa uma estante com livros misturados, história, psicologia, política, biografias, arte, literatura de Machado de Assis a Guimarães Rosa, e alguns estrangeiros em tradução. Por enquanto não ia passar esses livros a César, eram adultos para ela e poderiam indispô–la contra bons autores. Bastava por enquanto que César conservasse o gosto pela leitura; a qualidade viria na época certa. Ela mesma, Basília, lera M. Delly e Henri Ardel, e gostara. Porém Basília achava também que a leitura não devia preencher todo o tempo livre das mocinhas. A moça que não sabe bordar, tricotar, costurar, fica uma mulher incompleta. Você não acha, Horaciano? 
Horaciano não achava. Para ele, ensinar todas as meninas a bordar, a tricotar etcétera era uma norma do passado. Hoje há muitas outras ocupações que as mulheres podem desempenhar. As que tiverem preferência para as chamadas prendas domésticas, que se dediquem. E bom proveito. O que não cabe mais em nosso tempo é querer perpetuar a divisão do trabalho, pela qual se estipulou não se sabe quando nem por quem, que umas atividades são próprias de homem, outras de mulher, e estamos conversados. 
— Eh, qualquer dia desses você está aceitando que a sua filha vá ser, digamos… mecânica de automóvel — disse Basília. 
— Ora, se for da vontade dela… 
— Espere aí, Horaciano. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra — disse Esmeralda. — Imagine a nossa filha lambuzada de graxa até os cabelos, e com aquele gorrinho de farricoco na cabeça. Faça–me o favor! 
— Bom, não é profissão para dondoca. Quanto ao gorro, imaginosa como é, ela poderá inventar outra cobertura para proteger o cabelo da graxa e da sujeira do chão da oficina, onde terá de se deitar para mexer nos carros por baixo. 
— Está vendo? Se ela ficasse em casa fazendo o seu tricô, o seu crochezinho, estaria sempre de mãos e cabelos limpos, de banho tomado e cheirosa — disse Basília. — Qual o rapaz vai olhar para uma moça besuntada de graxa e de unhas pretas de fuligem de motor? 
— Os empregados da oficina vão olhar. E os donos dos carros também — disse Horaciano. 
— Que horror, Horaciano! É isso que você quer para nossa filha? Eu sou contra. Não aprovo mesmo — disse Esmeralda. — Me admira você com essas ideias. 
— A ideia não terá sido minha, mas dela. 
— E se ela vier com essa ideia você aprova tranquilo — disse Esmeralda. 
— Nem tranquilo nem aflito. Apenas respeitando. 
— Quer dizer que se César pender para trabalho de homem, e dos mais brutos, você não move uma palha para impedir? — perguntou Basília. 
— Ah, esse não move mesmo. Se César quiser ser amansadora de cavalo, peão de obra, motorista de carreta, soldado de polícia, ele está aí para aprovar — disse Esmeralda. 
— Aprovar não. Aceitar. Pode–se aceitar uma coisa sem aprovar. Este seu café, por exemplo.

José J Veiga — O risonho cavalo do príncipe, 1992



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Eu quero a imortalidade


Este, certamente, será o post mais pessoal que já escrevi aqui. Outrora, os blogs funcionaram mais como um diário; agora, têm mais conteúdo do que divagações. Vamos resgatar esse antigo aspecto então aqui, porque existe um assunto que o episódio San Junipero, de Black Mirror e, consequentemente, o episódio 272 do AntiCast, me fizeram refletir mais do que nunca:

A ideia de finitude me aterroriza.

Será por isso que escrevo? Para permanecer no mundo, após o meu tempo de vida? Creio que não. Talvez eu deva, então, assumir: escrevo porque gosto de escrever. De criar histórias.

A questão é: quero ficar vivo para escrever histórias. E não só para isso. Quero sentir o vento, quero sentir o frio, e até o calor que odeio, quero ver a natureza, árvores, montanhas, rios, oceanos, quero ler, quero viver. Quero a imortalidade para isso.

Mas o que é a imortalidade"? Permanecer nesse mundo? Ter uma “alma" para continuar, ou — e é aí que entra o episódio San Junipero  a vida é a nossa consciência? Se for, a vida em San Junipero é uma possibilidade de imortalidade? Vamos ser mais específicos: um escritor, que tenha sua consciência transferida para uma realidade virtual, indistinguível da “realidade real" em tudo, irá continuar criando, escrevendo?

Se você não viu esse episódio de Black Mirror, saiba que San Junipero é para onde as pessoas que não querem deixar de existir ao morrer vão — suas consciências são levadas para lá, através, digamos, de upload. Desculpem pelo spoiler.

E eu, particularmente, faria isso.

Religiosamente falando, não sei no que creio. Nem se creio em algo. Acontece que, vendo por esse viés, e levando em consideração a reencarnação, onde temos que voltar para viver todo tipo de coisa para evoluir, eu pergunto: viver para sempre não dá na mesma? Pense, você que está lendo isso: quanto a sua vida mudou nos últimos 10 anos? Provavelmente bastante. A minha mudou radicalmente. E o que isso seria, essa multiplicidade de vivências, ao longo de 500 anos? 1.000 anos?

Mas aí você pode pensar: Mas viver em um programa, uma realidade virtual, não oferece a mesma carga de experiências que o mundo real oferece. Sério mesmo? Quantas mudanças e reboots e remakes de tudo o que é virtual você viu nesses mesmos 10 anos? Inúmeras, não é? Então você acha que San Junipero continuaria mesmo igual para sempre?

Então não nos atenhamos a esse aspecto da imortalidade. Dizem que a pessoa que vai viver para sempre já nasceu, hoje em dia. Isso significa: a medicina está tão avançada que, em nossa geração, ou nessa nova, dos que nasceram por esses dias, haverá alguém que já não morrerá de morte natural. Acho isso possível mesmo. E espero que seja. Mesmo que com um corpo artificial. Afinal, nossa vida é nosso corpo, nossa mente ou nossa alma?

E, se você acha que viver eternamente é um saco, responda honestamente: você quer mesmo morrer? Se respondeu “sim", responda essa outra pergunta: É porque você não gosta de viver, ou porque tem medo de ficar velho, ou doente, ou definhar? Em uma realidade virtual, em um corpo artificial ou com uma medicina avançadíssima, isso não aconteceria. E, se você acha que realmente morrer é um fato natural, após algum tempo... Bem, isso deveria ser sempre uma escolha pessoal.

Eu escolho viver o máximo que eu puder.