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quinta-feira, 25 de maio de 2017

Um trecho marcante de Jeff VanderMeer #2


Você deve perceber quanta angústia tudo isso me fez sentir. Tudo o que tínhamos eram os relacionamentos dentro da empresa. Todas as informações vinham de uns para os outros. O que esperava por nós a cada noite na cidade, não suportávamos descrever. 
Esses funcionários haviam estado em meu apartamento. Eu tinha compartilhado meu aumento com eles. Tinha passado os feriados tanto na casa de Mord quanto na de Leer, apesar do perigo das ruas. Nós tínhamos feito caminhadas pelos edifícios da vizinhança como desculpa para almoços longos. Mord dividiu comigo a triste situação de sua esposa meio plástico, meio carne. Leer contou sobre sua infelicidade em casa, com um marido que preferia enfiar enguias de memória em seu reto a passar algum tempo com ela. Eu tinha partilhado minha solidão, de como era difícil encontrar o amor se alguém não o tivesse trazido com ele enquanto fugia da desintegração do mundo. Tinha mostrado a eles as poucas fotografias que eu ainda tinha de meus pais durante suas férias em algum lugar exótico perto do mar, colunas de mármore atrás deles. As ruínas de sorrisos desbotados, os quais tinha que interpretar tanto. Nós tínhamos falado tanto sobre o quanto perdemos da rigidez dos velhos tempos, o quanto a qualidade fluida do que acontecia agora, em casa e no escritório, nos assustava, não importando o quanto tentássemos negar. Como ninguém que tivesse nascido agora poderia entender o quão diferente tudo tinha sido, uma vez. 
Por essa razão, por termos sido tão chegados por tanto tempo, culpo Scarskirt pelo meu isolamento crescente. Era lindíssima e animada e todos a amavam, mas agora acredito que ela escondia uma ferida secreta de nós, que já estava marcada muito antes de nos conhecermos. Que nunca ligou para ninguém e cobiçava meu trabalho desde o momento em que foi contratada, apesar de minha simpatia. Apesar de eu ser tão aberto. Apesar do fato de eu ter dividido todos os meus besouros de treinamento com ela. Não alterei um único antes de entregá–los a ela. Três ou quatro empregados morriam todo ano de besouros envenenados dados por seus treinadores. Mas eu a tinha aceitado em meu grupo, sem maldade em meu coração. 
No entanto, minha confiança agora significava meu isolamento. Meu único consolo vinha do meu escritório, onde ainda controlava meus besouros, e a cabeça falante de crocodilo que fiz me contava piadas quando me sentia deprimido.

Jeff VanderMeer — A situação



quinta-feira, 18 de maio de 2017

Zé Calabros na Terra dos Cornos


.: Este é o primeiro livro do Desafio Literário Clube de Autores, de um total de 7 livros! :.

Quando eu me propus a iniciar esse desafio, de ler obras autopublicadas pela plataforma Clube de Autores, confesso que imaginei que encontraria apenas obras cruas. (Supremo egocentrismo de minha parte? Estaria eu achando que somente a minha obra estaria bem finalizada? Que feio…) Assim sendo, comprei o Zé Calabros na Terra dos Cornos porque achei que seria a mais divertida para começar, e caí do cavalo com meus preconceitos, porque o livro é um puta livro bom.


Acertei, pelo menos, na parte do divertido — pensem num livro engraçado e com cenas hilárias…! A história acompanha o personagem principal, o Zé Calabros, desde o momento em que ele salva um “náufrago” que está prestes a morrer afogado, e passando pelos principais momentos do passado do protagonista, que o levaram a ser quem é. Acontece que o tal náufrago é uma moça, Mara'iza, de um império distante e, assim com a terra de Zé, a Cornália, é análoga ao nosso Nordeste, a de Mara é análoga ao Japão — mas, ainda assim, tudo com um curioso toque de nordeste, e isso é muito bem construído. Aliás, a construção de mundo do autor, Tiago Moreira, é incrível. Além de ele escrever muito bem, criou uma terra fantástica, cheia de criaturas mágicas conhecidas, mas que têm um quê muito peculiar — e muito arretado. Como eu disse, tudo aqui cheira a Nordeste — as partes boas e as partes ruins dele —, e é tudo tão bem amarrado, tão bem descrito e “climatizado” que a verossimilhança e a veracidade que o Tiago passam são irretocáveis. Esses dois personagens são vivos, cheios de personalidade, fortes e humanos… mas não é só na construção dos heróis que o autor brilha — seus vilões, os cangaceiros, são memoráveis.

O principal deles é o Severino Barrida D'Água, o Rei do Cangaço, mas não é o único bem construído: temos os ótimos Petrúquio Fragoso, Velho Tição e sua Sônia Regina, Virgulino Cornoaldo, Chassi de Grilo… Cada um com suas particularidades e motivos. 

(E existem ainda os excelentes e cômicos Svar e Brunnhardt, de nomes tão diferentes do que é visto no livro e dos quais não vou falar muito para não estragar a surpresa, além dos secundários que também têm arco narrativo importante.)

Mas acham que são somente os personagens, a construção do mundo e a escrita os pontos fortes do livro? Pois estão enganados. A trama também é muito bem trabalhada; o caminho dos personagens está entranhado com o background de forma muito bem–feita e, apesar de o livro ter quase 500 páginas, não senti “barrigas” em lugar nenhum. Tudo o que está lá tem motivos, dos flashbacks aos diálogos, das pausas para os descansos às batalhas… e aqui eu quero pontuar mais um ponto forte da obra: as próprias batalhas. O Tiago Moreira não perde tempo narrando trivialidades, mas descreve tudo o que tem que descrever para deixar as cenas de luta — tanto um–a–um como em defesa de cidades — cinematográficas, verossímeis e emocionantes ao mesmo tempo. Destaco três delas: a contra o dragão (sim, há dragões!); a em defesa da cidade de Bota do Judas; e a invasão de São Vatapá do Norte. Aliás, mais uma coisa divertidíssima: os nomes das cidades! Curva do Vento, Bota do Judas, Beira da Larica, Meu Jisuis Cristin, Meiducamin, Meidunada… Excelente! E cinematográfica também é a cena da chegada dos quatro cavaleiros a São Vatapá do Norte.


Mas, calma lá, Rahmati; falando assim, parece que a obra não tem pontos fracos… E então eu digo: não tem mesmo! Não estou brincando; posso colocar o Zé Calabros na Terra dos Cornos quase em pé de igualdade com as obras de fantasia que mais curti nos últimos anos, como O inimigo do mundo e O caçador de apóstolos do Leonel Caldela, ou o Mistborn: O império final do Brandon Sanderson… Tiago Moreira tem tudo para se consolidar como um grande autor nacional de fantasia — é só não deixar, na minha opinião, todo esse brasileirismo que ele apresentou em Zé Calabros de lado nas continuações, que parece que existirão, já que o volume traz o subtítulo As crônicas anímicas na capa… (Bom, para falar a verdade, existe uma ressalva: há um viés político na obra — que não me incomoda muito, por eu não discordar totalmente dele, mas ele está lá. Alguém mais sensível a esse posicionamento pode se incomodar, mas essa é, afinal, uma escolha consciente do autor, e deve ser respeitada (e repito: não tira nadica de nada do mérito da obra)).

Enfim — parabéns para o Tiago Moreira por uma obra de estreia tão incrível, e só torço para que ele seja reconhecido, consiga muitos leitores e continue trazendo aventuras do Zé e da Malinha :D

sábado, 6 de maio de 2017

Memória da água, de Emmi Itäranta


É possível se escrever um romance baseado especialmente em um clima, no sentido de sentimento, vibe, atmosfera? Porque me parece que foi isso o que aconteceu com Memória da água, da finlandesa Emmi Itäranta.


.: Este é segundo livro do Desafio Literário do Marcador de Páginas, de um total de 7 livros, e é o item “Um livro com um dragão na capa”! :.

No mundo retratado por esse livro, finalista do prêmio Philip K Dick, como vocês podem ver na imagem, a China é a grande potência dominadora de um mundo que sofre da total degradação das fontes de água potável. A história se passa primariamente na União Escandinávia, território agora pertencente ao Novo Qian, e mesmo aquele lugar, hoje terra de lagos, é um desertão sem fim. Como o regime vigente é o militarista, são eles, os militares, que controlam todas as (poucas) fontes de água existentes — assim como a história que é contada aos civis, onde todo o passado do mundo foi obliterado dos registros.

E é aí que entra o drama da família Kaitio — o pai, o Mestre do Chá; a mãe; e a menina Noria, a protagonista e narradora. A profissão do pai — realizar tradicionais cerimônias do chá — exige água, e todos nessa sociedade têm cotas muito restritas. O centro da trama é a chegada das investigações ostensivas do exército a esse lugar, e o clima de opressão que as pessoas passam a sentir nesse momento, justamente o momento em que o pai está passando os segredos da arte à filha.

O livro todo é escrito num belo e tocante tom melancólico, que fala de tempos que não mais voltarão, de coisas que foram perdidas em tempos mais prósperos, de felicidades que parecem ser utópicas demais para serem alcançadas. A prosa é muito bem escrita; a autora domina completamente o ritmo e a intenção de seu texto, e ainda que alguns leitores possam dizer que a trama demora a avançar, deve–se ter em mente que não é esse o objetivo; parece–me ser muito mais causar no leitor o estado de espírito necessário para compreender a amplitude do sofrimento dos moradores daquele regime.

É impossível não sentir a tristeza desoladora e impotente da protagonista quando as coisas lhe acontecem — os destinos da mãe, do pai, da amiga, do seu próprio. Memória da água passa uma mensagem preocupante e necessária, e ter chegado até aqui, vindo da Finlândia — caminho incomum de ser percorrido — é um alento, ainda que a obra não pareça ser tão conhecida. Merece demais a leitura, especialmente por me parecer estarmos encaminhando para um mundo muito semelhante ao nela retratado — a desertificação e a dominação por regimes totalitários com a manipulação da história oficial.