“Então aconteceu o que tinha que acontecer. Ouviram-se tiros na rua. Vêm-nos matar, gritou alguém, Calma, disse o médico, devemos ser lógicos, se quisessem matar-nos era cá de dentro que viriam disparar, não lá fora. Tinha razão o médico, foi o sargento quem deu a ordem de disparar para o ar, não foi um soldado que de repente tivesse cegado quando estava com o dedo no gatilho, compreende-se que não houvesse outra maneira de enquadrar e manter em respeito os cegos que saíam aos tropeções dos autocarros, o ministério da Saúde tinha avisado o ministério do Exército, Vamos despachar quatro camionetas deles, E isso dá quantos, Uns duzentos, Onde é que se vai meter toda essa gente, as camaratas destinadas aos cegos são as três da ala direita, segundo informação que temos, a lotação total é de cento e vinte, e já lá estão sessenta ou setenta, menos uma dúzia que tivemos que matar, O caso tem remédio, ocupam-se as camaratas todas, Sendo assim os contaminados vão ficar em contacto directo com cegos, O mais provável é que, mais tarde ou mais cedo, esses venham a cegar também, aliás, tal como a situação está, suponho que contaminados já estaremos todos, de certeza não há uma só pessoa que não tenha estado à vista de um cego, Se um cego não vê, pergunto eu, como poderá transmitir o mal pela vista, Meu general, esta deve ser a doença mais lógica do mundo, o olho que está cego transmite a cegueira ao olho que vê, já se viu coisa mais simples, Temos aqui um coronel que acha que a solução era ir matando os cegos à medida que fossem aparecendo, Mortos em vez de cegos não alteraria muito o quadro, Estar cego não é estar morto, Sim, mas estar morto é estar cego, Bom, então vão ser uns duzentos, Sim, E que fazemos aos condutores dos autocarros, Metam-nos também lá dentro. Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, o ministério do Exército chamou o ministério da Saúde, Quer saber a novidade, aquele coronel de quem lhe falei cegou, A ver agora que pensará ele da ideia que tinha, Já pensou, deu um tiro na cabeça, Coerente atitude, sim senhor, O exército está sempre pronto a dar o exemplo.”
José Saramago - Ensaio sobre a cegueira, 1995
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