Qualquer livro de Saramago é uma experiência gratificante. Não foi diferente com O Evangelho segundo Jesus Cristo, não foi diferente com Ensaio sobre a cegueira. Grandes histórias, grandes desenvolvimentos, grandes personagens, de um grande escritor. Uma grande trama, simples a início, mas que logo mostra a incrível capacidade do autor de trazer à tona os aspectos mais corriqueiros do dia-a-dia e dar-lhes um novo e profundo significado, uma nova abordagem, uma nova intensidade. Saramago é, para mim, um mestre em dizer o que os outros não conseguem, em escrever o que os outros acham que não precisa ser escrito e, com isso, nos fazer pensar: por que os outros não escrevem assim? Ler um livro dele é perceber a que níveis a escrita pode chegar; nos leva a entender o quê realmente é a literatura, o quê realmente um escritor deve fazer com o seu monte de páginas em branco.
Embora nenhum dos seus personagens — desse livro — tenha nome, cada um deles é notável e marcante; cada um com suas peculiaridades, suas motivações, suas imperfeições, sim, porque pode-se dizer até que são pessoas mais reais que muitas que nós conhecemos. O médico, o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, o cão das lágrimas (adorei ele!), o velho da venda, a menina dos óculos escuros — ou a rapariga dos óculos escuros, como ele escreve no português europeu. Essa foi um decisão muito acertada da Companhia das Letras: manter o estilo e a grafia no original, sem adaptações, porque assim podemos perceber exatamente o que passou por sua mente ao escrever — e isso fica, acreditem, perfeitamente nítido através da clareza de sua escrita.
Dizem que essa obra se enquadra no estilo "realismo mágico", ou seja, uma estória realista com um ou poucos elementos irreais ou fantasiosos; talvez isso acabe — em se tratando de Saramago — diminuindo-a. Eu diria, antes, que o que Saramago passa através de seus dedos (em caneta ou teclas) não se limita à realidade, transcende-a, ignora-a em prol do que precisa ser levado aos leitores. A dita realidade é o que menos importa em termos de Saramago; quando ele escreve, o mundo se dobra a ele, em todas as suas particularidades, belezas, feiuras, sutilezas e crueldades — e nenhuma delas, garanto, falta em Ensaio sobre a cegueira.
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