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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Análise de Veludo Azul, de David Lynch


Veludo azul é um filme de 1986, dirigido e escrito pelo maluco David Lynch. Eu o assisti pela primeira vez essa semana, e já previamente preparado para a loucura que encontrei no outro filme que vi dele, o Cidade dos sonhos, terminei a experiência levemente incomodado — Veludo azul parecia linear demais. “Redondinho” demais. Contudo, a amiga que me apresentou o cineasta me disse: “Lembre–se; é uma obra do Lynch. Existem camadas, sempre.” E então começamos a conjecturar, e eu reassisti ao filme. Naturalmente, esse texto é voltado para quem já o assistiu, também.


O plot padrão — vamos dizer assim — do filme é simples: o pai de Jeffrey Beaumont sofre um derrame, e ele tem então que voltar para a casa dos pais para ajudar na loja. Na volta do hospital ele encontra uma orelha decepada no meio do mato, e a leva a um vizinho policial. A filha do vizinho, Sandy, diz que tem pistas — ouviu que uma cantora, Dorothy Vallens, pode ter algo a ver com isso. Jeffrey, então, invade o apartamento da cantora e descobre que ela é vítima de Frank Booth, um lunático psicopata que sequestrou seu marido e filho. Frank abusa dela em troca de “cooperação”, e Jeffrey logo se vê envolvido com tudo isso de um modo que não pode mais fugir. Ele leva uma surra de Frank e seus capangas, descobre que um policial parceiro do pai de Sandy está envolvido com Frank, em meio a um esquema de drogas e o escambau. E, no fim, claro que tudo dá certo.

Mas, sejamos sinceros — esse é um filme de David Lynch, poxa. E as camadas?

“Pode tudo ter sido um sonho”, disse minha amiga. Mas, se sim, foi um sonho de quem? Após queimarmos muitos neurônios, chegamos à explicação mais satisfatória: tudo foi, na verdade, um sonho do pai de Jeffrey — ou um delírio, ou uma lembrança, uma vontade de corrigir as coisas do passado, desencadeada pelo derrame. Ele, então, seria o verdadeiro protagonista do filme. A icônica cena do começo, onde a câmera entra por baixo da grama verdinha e mostra os insetos nojentos embaixo, não mostra só a corrupção do mundo por baixo da aparente beleza; mostra também a corrupção por baixo do pai de Jeffrey.

Então a história se passa no passado, na verdade? Sim! As músicas são um ótimo exemplo disso: são sucessos dos anos 50 — época do fim da juventude do protagonista. Outro bom exemplo disso é que, quando a história realmente começa — após o derrame —, o outdoor que dá boas–vindas à cidade de Lumberton é muito semelhante a uma peça dos anos 50/60.


Por que, então, o protagonista se apresenta como Jeffrey? Como eu disse, há um desejo de reparação. Ele cria um personagem, em sua cabeça, semelhante ao filho — bom, honesto, inocente, que irá corrigir as coisas erradas do mundo. Só que esse personagem, no entanto, não existe! Ele — Jeffrey, o protagonista — e Frank são a mesmíssima pessoa: um, o que aparece para a sociedade; o outro, o monstro que aparece sob efeito de drogas, que bate em Dorothy e a estupra. Existem algumas dicas para isso durante o filme:
• Dois personagens podem ser a mesma pessoa, nesse filme. É assim com o Double Ed, que ajuda Jeffrey na loja. Jeffrey se refere a ele no singular, mas são dois atores. Isso pode ser um reflexo do inconsciente do protagonista. 
• Na cena do espancamento de Jeffrey, Frank diz a ele: nos meus sonhos você é todo meu, usando a letra da música de Roy Orbison que está tocando; além disso, Frank passa batom e beija Jeffrey, e ambos ficam parecidos, com as bocas borradas. 
• Jeffrey diz a Sandy, após o espancamento, que vai voltar ao apartamento de Dorothy porque está descobrindo coisas que sempre estiveram escondidas. 
• Além disso, depois do espancamento, Jeffrey chora ao lembrar de quando ele “fez a transição” e bateu em Dorothy quando provocado. É como se ele não controlasse a “personalidade Frank”.
• O sobrenome de Frank é Booth, muito semelhante a “both” — ambos, em inglês.
• Dorothy diz a Sandy, no final, que Jeffrey “passou sua doença para ela”. Que doença seria essa? A loucura, talvez.
• Não haveria maneira de Dorothy saber onde Jeffrey morava, se já não houvesse entre eles um envolvimento anterior.
• Além disso tudo, Sandy diz a Jeffrey, em um momento, que não sabe se ele afinal é um detetive ou um pervertido, e ele responde que ele sabe, mas ela (assim como nós) terá que descobrir. 
Sendo assim, o protagonista inventou esse personagem, esse detetive justiceiro, inspirado na imagem do próprio filho, para criar uma versão convincente a si mesmo de que fez algo de bom, afinal.



Sobre a questão das drogas: parece–me claro que Ben, o doidão que dubla a música In dreams e que mantém o marido e filho de Dorothy em cativeiro, é o fornecedor. Ele e Frank se vangloriam de terem despistado o policial corrupto que aparece sempre de terno amarelo. Se Frank é mesmo Jeffrey, faz sentido ele ter se disfarçado do “homem que se veste bem” para tirar as fotos remotamente e as entregar para o pai de Sandy, incriminando o policial de terno amarelo. Faz sentido, também, Jeffrey ter perguntado para Sandy se ela reconheceu o homem de amarelo que bate à porta do apartamento de Dorothy antes dela, na “primeira incursão” ao apartamento. Quando ela diz que não o reconheceu, ele então desconversa. O policial corrupto, assim, acaba sendo o “vilão” da história, morto no final.

O final, então — a morte de Frank —, pode ser um ato simbólico, do momento onde a personalidade Jeffrey vence a personalidade Frank, graças ao amor de Sandy (ou, no caso, da mãe de Jeffrey, personalizada na figura da namorada de Jeffrey)… e a uma certa dose de oportunismo.

Se você ainda está achando que faltam elementos que corroborem essa teoria de o filme — ou, ao menos, o tempo de filme correspondente ao da internação do pai de Jeffrey — se passar inteiramente na mente do protagonista, eis outros detalhes:
• Todos os figurantes aparecem estáticos — o homem com o cachorro no começo do filme; os figurantes da casa de Ben; o policial de amarelo que já estava morto mas ainda de pé no final… É como se o protagonista se lembrasse de que estavam lá, mas não do que eles faziam.
• Esse período do filme se passa entre os momentos em que a câmera entra e sai de duas orelhas, e vale lembrar que ela entra em uma orelha esquerda e sai de uma direita, como se estivesse passando por dentro da cabeça. Lembrem–se: Lynch não dá ponto sem nó.
• O marido e o filho sequestrados de Dorothy só são mostrados quando já não representam tanto remorso para Jeffrey/Frank — o marido quando está morto, com a culpa caída sobre o policial corrupto, e o filho quando está com a mãe. (O marido, inclusive, é mostrado morto com um tiro no olho — talvez, mostrando que o defeito dele foi ver o que não devia (Jeffrey, inclusive, se mostra incomodado com isso na figura de Double Ed no começo, que sabe quantos dedos ele mostra mesmo sendo cego — ou seja, sabe coisas que não deveria saber). Talvez ver e ouvir o que não devia, já que ficou sem uma orelha também.)

Existem ainda algumas lacunas? Sim, sempre! É um filme do David Lynch, pô, haha! Contudo, me recuso a crer no filme policial–noir redondinho que nos é passado na primeira leitura. Nada é tão simples nos filmes desse cineasta, e, no final, está lá o passarinho que não me deixa mentir — encarando os personagens, ele mostra que tudo bem, o amor venceu, mas olha o besouro nojento ali, bem na cara de todo mundo, escondido nos cantos sombrios, debaixo das fachadas do mundo.



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