(Originalmente publicado no Papo de Cafeteria.)
Certamente, falando sobre livros, você já ouviu a célebre — só que não — frase: “Mas isso aí é ficção científica...” (e complementada por N colocações preconceituosas e com a pior ênfase possível no termo “isso aí”). Estou certo que, dentre todos os seus conjuntos de reações prováveis, boa parte delas envolveu um nó nas tripas — e, cá entre nós, isso é perfeitamente compreensível. É quase como ouvir falar mal da mãe, para nós, amantes do gênero. E é por isso que estamos aqui, sentados nessa mesa, degustando nossos cafés, não é? Aliás, vai um gole aí de cappuccino? Não? Melhor para mim, hehe. Talvez, depois desse papo, você possa ter uma coisa (ou duas) a dizer quando ouvir esse tipo de... abominação. Assim sendo, para início de conversa, posso sugerir uma questão? Pense nisso, e me responda:
Qual é, afinal de contas, a importância da Ficção Científica na literatura?
Arte de Fahrenheit 451, por aspius |
Pensou? Então considere, agora, uma questão maior ainda: Qual é a importância de qualquer coisa? Essa segunda questão complicou o raciocínio? Qual é a importância da sua casa para um morador do Vietnam? E qual é a importância, para você, do vaso de cerâmica que esse vietnamita decorou com pintura? “Importância” é subjetiva ou não? Ou eu já estou elucubrando — especulando, filosofando, matutando — demais? Elucubrar é desimportante? Ou estimula o raciocínio? Quem pensa demais acaba por ficar louco, ou por impulsionar as ciências? (Desconsidere a possibilidade de ambas as coisas ocorrerem ao mesmo tempo.) Há alguma resposta definitiva ou objetiva a qualquer uma dessas questões?
O tipo de pessoa que levanta aquela inominável questão do início do papo frequentemente também diz que tais obras são repletas de “fantasias” e “coisas impossíveis”, e que, definitivamente, não podem ser comparadas à importância das obras dos mestres da literatura. Algo me diz que esses mestres não pensariam assim, mas não entremos nesse mérito; o caso é que, se essas pessoas se atêm somente a esses aspectos dessas obras... bem, elas devem absorver a mesma taxa de conteúdo de Dan Brown, Paulo Coelho, Liev Tolstói e José Saramago, nivelada por baixo. (A definição de “baixo", neste caso, deixo para você.)
A questão é: não seriam essas “fantasias” e “impossibilidades” justamente as elucubrações de autores que pensam a fundo questões científicas? E estou falando tanto dos átomos e da física quanto das ciências sociais. Que criam mundos futuristas, viagens e linhas temporais, distopias e falsas utopias, evoluções e manipulações genéticas incontroláveis? Em que sentido essas elucubrações divergem das dos autores “realistas”, que usam como matéria prima apenas o que se refere ao presente ou ao passado de nosso mundo? Essa questão eu me imagino ser capaz de responder! (Alguma eu tinha de ser, não é?) Os autores realistas — em sua maior parte — diferem dos autores de Ficção Científica — em sua maior parte — e eu nem estou falando da Fantasia ainda — no que tange à natureza de suas elucubrações!
O Big Brother, de 1984, está vendo você. Qualquer semelhança com o mundo real é mera coincidência. |
Enquanto Arthur Clarke, Isaac Asimov e Ray Bradbury — e também os nossos, por que não?, Luiz Bras, Alexey Dodsworth e Carlos Orsi — elucubram a respeito do porvir, do que pode ser feito/restar/não restar de nossa civilização quando certas tecnologias ou ciências forem desenvolvidas ao extremo, os escritores como Graciliano Ramos, J. M. Coetzee, Marguerite Duras e Victor Hugo elucubram a respeito do que veem às suas voltas, sobre o nosso mundo real, sobre todas as injustiças e lutas individuais que exemplificam e caracterizam nossa sociedade. É indubitável que eles nos fazem rever com mais clareza nosso caminho sobre as pedras desse planeta — mas quais deles? O primeiro grupo, o dos sonhadores de mundos, ou o segundo, dos analisadores do mundo? Ha!, essa resposta eu também tenho: ambos! E qual é a importância da literatura de ambos para aquela pessoa do início, que está “cagando e andando” para o vietnamita que pinta cerâmica? Perceberam que essa resposta não é, de fato, importante? E tão desimportante quanto a pessoa que a questionou.
Eu sugiro, a título de conclusão, uma resposta talvez simples, e talvez inconclusiva como todas as respostas devem, na minha opinião, ser, e você pode concordar ou não:
As obras de ficção científica só são importantes na medida daqueles que as escreveram — exatamente como as obras e os escritores ditos realistas. As ideias são o que importa! A tríade escritor/ideia/obra talvez seja indissociável, e por isso ouso dizer que, se Ray Bradbury tivesse escrito, ao invés de seu Fahrenheit 451 o livro João e as couves de Bruxelas, contendo as mesmas ideias que o seu duplo de outra realidade, este é que seria importante. Bradbury é o responsável por aquilo, e sem ele, os livros não atingiriam seus 451° F e não nos trariam tantas reflexões a respeito de nosso próprio mundo, assim como sem Asimov a Eternidade não se ergueria sozinha, e ambas as obras não existiriam para nos fazer refletir sobre os erros de se tentar manipular e controlar a tudo e a todos. Assim, enquanto os escritores “realistas” nos mostram o que há de errado — e certo também, por que não? — com o nosso mundo, os escritores do “fantástico” nos mostram tudo aquilo que ele pode — ou não pode — se tornar, se nos descuidarmos ou se cuidarmos demais.
Arte inspirada em O planeta dos macacos, por Marko Manev. |
É claro que as estórias também têm sua cota de importância no peso final das obras; sem entretenimento, elas simplesmente não são lidas — mas estou certo de que é por suas ideias que elas, afinal, são e serão lembradas. Por aquelas ideias, surgidas das indagações, das elucubrações, das discussões regadas a café. Por aquelas ideias, de todos aqueles que elucubraram o suficiente para gravar magicamente nas páginas de um livro aspectos preocupantes das realidades presentes, passadas ou futuras, que já ou que nunca aconteceram nem acontecerão, mas que tiveram a coragem de pensar.
Pelas ideias daqueles que elucubraram.
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