“Acontece que nem Esmeralda nem Horaciano estavam perdendo o sono por causa das leituras de César. Que muito alegravam também a tia Basília. Que adianta a pessoa aprender a ler para depois virar as costas aos livros? Basília mesma tinha em casa uma estante com livros misturados, história, psicologia, política, biografias, arte, literatura de Machado de Assis a Guimarães Rosa, e alguns estrangeiros em tradução. Por enquanto não ia passar esses livros a César, eram adultos para ela e poderiam indispô–la contra bons autores. Bastava por enquanto que César conservasse o gosto pela leitura; a qualidade viria na época certa. Ela mesma, Basília, lera M. Delly e Henri Ardel, e gostara. Porém Basília achava também que a leitura não devia preencher todo o tempo livre das mocinhas. A moça que não sabe bordar, tricotar, costurar, fica uma mulher incompleta. Você não acha, Horaciano?
Horaciano não achava. Para ele, ensinar todas as meninas a bordar, a tricotar etcétera era uma norma do passado. Hoje há muitas outras ocupações que as mulheres podem desempenhar. As que tiverem preferência para as chamadas prendas domésticas, que se dediquem. E bom proveito. O que não cabe mais em nosso tempo é querer perpetuar a divisão do trabalho, pela qual se estipulou não se sabe quando nem por quem, que umas atividades são próprias de homem, outras de mulher, e estamos conversados.
— Eh, qualquer dia desses você está aceitando que a sua filha vá ser, digamos… mecânica de automóvel — disse Basília.
— Ora, se for da vontade dela…
— Espere aí, Horaciano. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra — disse Esmeralda. — Imagine a nossa filha lambuzada de graxa até os cabelos, e com aquele gorrinho de farricoco na cabeça. Faça–me o favor!
— Bom, não é profissão para dondoca. Quanto ao gorro, imaginosa como é, ela poderá inventar outra cobertura para proteger o cabelo da graxa e da sujeira do chão da oficina, onde terá de se deitar para mexer nos carros por baixo.
— Está vendo? Se ela ficasse em casa fazendo o seu tricô, o seu crochezinho, estaria sempre de mãos e cabelos limpos, de banho tomado e cheirosa — disse Basília. — Qual o rapaz vai olhar para uma moça besuntada de graxa e de unhas pretas de fuligem de motor?
— Os empregados da oficina vão olhar. E os donos dos carros também — disse Horaciano.
— Que horror, Horaciano! É isso que você quer para nossa filha? Eu sou contra. Não aprovo mesmo — disse Esmeralda. — Me admira você com essas ideias.
— A ideia não terá sido minha, mas dela.
— E se ela vier com essa ideia você aprova tranquilo — disse Esmeralda.
— Nem tranquilo nem aflito. Apenas respeitando.
— Quer dizer que se César pender para trabalho de homem, e dos mais brutos, você não move uma palha para impedir? — perguntou Basília.
— Ah, esse não move mesmo. Se César quiser ser amansadora de cavalo, peão de obra, motorista de carreta, soldado de polícia, ele está aí para aprovar — disse Esmeralda.
— Aprovar não. Aceitar. Pode–se aceitar uma coisa sem aprovar. Este seu café, por exemplo.”
José J Veiga — O risonho cavalo do príncipe, 1992
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