(Originalmente publicado no Papo de Cafeteria, republicado no Monomaníacos, discutido no CabulosoCast #122 - A (polêmica) literatura fantástica nacional, e gerou minha participação no CabulosoCast #149 - Realismo mágico)
Cena do filme A estrada, baseado no livro de Cormac McCarthy. |
Existe muita confusão sobre o tal do gênero conhecido como realismo mágico. Como se pode ser realista quando se fala de alguma coisa mágica? Seria esse um gênero mainstream disfarçado de fantasia para vender mais, ou um jeito que a fantasia deu de se enfiar no meio mainstream? No que ele difere da ficção fantástica tradicional?
É aceito que o realismo mágico tenha surgido na América Latina com escritores como Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e outros — mas isso se considerarmos estritamente o gênero de prosa produzida por esses senhores. Contudo, existem muitos outros escritores — inclusive fora da América Latina — que fazem obras que, nitidamente, bebem das mesmas fontes desses pioneiros; seriam, então, assim, excluídos do “gênero” por não estarem na mesma sombra geográfica? Mas, espere (você pode se perguntar); se não for assim, como sempre me foi dito, como eu vou identificar o que é realismo mágico e o que é ficção fantástica, ou fantasia? Bom, para começar a polêmica, já começo defendendo de que tudo é ficção fantástica. Daí podemos subdividir em fantasia, ficção científica, realismo mágico, terror, new weird… E então chegamos ao cerne: qual a diferença entre realismo mágico e fantasia, e como identificá-los?
Comecemos pelo mais fácil — a fantasia. O que é uma obra de fantasia? Parece óbvio dizer que O senhor dos anéis do Tolkien é fantasia, assim como As crônicas de gelo e fogo do George Martin. Temos dragões, magia e mortos-vivos em ambos. A Torre Negra do Stephen King também; temos portais dimensionais, ora! Em Deuses americanos do Neil Gaiman temos, bem, deuses!, assim como em O inimigo do mundo do Leonel Caldela. Até aqui tudo bem. Se não houvesse esses elementos, esses mundos se desfigurariam completamente. Não há Terra Média sem magia, sem magos e sem orcs; não há Arton sem elfos, deuses e kobolds. A América de Deuses americanos é moldada pelo “mundo atrás do palco”, e o mundo d’O pistoleiro é uma versão do nosso. Retirando-se o Um Anel, Gandalf ou Sauron, ainda sobram inúmeros elementos fantásticos em O senhor dos anéis, pois essa obra é feita disso. Do mesmo modo, o mundo d’A Torre Negra seguiu adiante, com ou sem Roland Deschain. E Arton sem a Tormenta continua sendo Arton. Agora… poderíamos dizer que o mesmo acontece em obras como A estrada do Cormac McCarthy, Kafka à beira-mar do Haruki Murakami, A metamorfose do Franz Kafka, Memórias póstumas de Brás Cubas do Machado de Assis, A menina que roubava livros do Markus Zusak…? (Perceberam que não mencionei nenhum dos autores latinos supracitados, não é?)
É nítido e evidente que os elementos fantásticos estão presentes nessas obras. A estrada fala sobre um mundo pós-apocalíptico; em Kafka à beira-mar temos um senhor que fala com gatos (e eles se entendem mutuamente, fique claro) e outras coisinhas mais; o protagonista de A metamorfose vira um inseto gigante; e em Memórias póstumas de Brás Cubas e A menina que roubava livros, quem narra as estórias são, respectivamente, um morto e a Morte. Contudo, eu também pergunto: Sem esses elementos fantásticos, as histórias perdem suas importâncias? Vamos lá, a resposta é fácil: não. A estrada não é sobre o mundo apocalíptico; é sobre o amor de um pai pelo filho na adversidade extrema. Em qualquer outro cenário semelhante aquilo funcionaria tão bem quanto. Perdidos no deserto de Gobbi ou no Atacama, em Marte ou no Ártico. Memórias póstumas… e A menina… têm somente narradores incomuns, o que torna suas estórias únicas, mas elas são perfeitamente possíveis em nosso mundo real. A metamorfose é sobre a melancolia, sobre o sofrimento de um ser humano que não vê sua utilidade no mundo, e Kafka à beira-mar tem em seus elementos fantásticos apenas adornos de um algo maior. E assim também é com A revolução dos bichos do George Orwell, Ensaio sobre a cegueira do José Saramago, Horizonte perdido do James Hilton, Incidente em Antares do Érico Veríssimo…
Então, essa definição é a final? Claro que não. Muitos estudiosos — ou chatos, como preferirem — não admitem que o realismo mágico seja mais do que aquela literatura de nicho feita na América Latina. Isso, contudo, a meu ver, seria semelhante a dizer que não há fantasia fora da Europa ou ficção científica fora da literatura escrita em inglês.
É quase como dizer que Star wars é fantasia e não ficção científica, mesmo tendo uma explicação para a Força e alienígenas serem aceitos na ficção científica de O fim da infância do Arthur C. Clarke e não em… Bom, mas acho que esse assunto terá que ficar para um próximo artigo.
Ilustração para o livro A Torre Negra vol. 1: O pistoleiro. |
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