“Ozob começou a pensar no que faria com o resto do dia e, principalmente, com a noite seguinte. Seu estômago já fervilhava, ardendo. O peito parecia estar sob um peso enorme. Eram os sintomas da lembrança, já fazia algum tempo que estava sóbrio e não tinha algo para ocupar a mente. A noção dos dois anos de vida se aproximou dele por todos os lados, fechando–se a seu redor, provocando uma espécie de claustrofobia. Pensou em começar uma briga. Lutar era sempre algo estimulante. O coração bateu mais rápido e ele andou mais rápido. Ia para lugar nenhum, mas andar rápido diminuía a sensação de que os minutos estavam passando inexoravelmente e que cada um o levava mais para perto do fim. Ele não estava fazendo nada divertido naquele momento. Era tempo perdido. Era tempo que não iria mais voltar.
Dois anos.
Dois anos.
Dois anos.
Ozob achou que estava prestes a vomitar, o coração batendo forte na garganta, quando seus implantes neurais fecharam uma sinapse. Ele estava recebendo uma mensagem pelo EgoBliss, uma das seis redes sociais instaladas nos implantes cibernéticos em seu cérebro.
Com um comando mental, verificou a origem da mensagem. California o havia marcado como amigo. Em sua mente, Ozob viu o rosto da garota, ouviu o timbre de sua voz, foi invadido por relances de memórias que eram dela. Deu um novo comando mental, para ler a mensagem.
Assim como todas as redes sociais, o EgoBliss era recheado de propagandas. Cada relação interpessoal tinha seus próprios patrocinadores. A amizade com California era um patrocínio de Nux–Cola. Nux–Cola, o sabor da amizade! Para acessar a mensagem, Ozob permitiu que a marca de refrigerante enviasse um comercial diretamente aos centros de prazer em seu cérebro. Foi invadido pela vontade de tomar Nux–Cola. Então pôde falar com a garota, numa interação aprovada pelas duas corporações envolvidas.
— Espero que você e a Vivika tenham se dado bem.
— Vou precisar de uns curativos, mas foi divertido.
Ozob mandou uma impressão de sarcasmo, que era uma imagem sua com um meio sorriso e uma sobrancelha arqueada.
— Eu também me diverti ontem à noite.
— Algum namorado ou namorada?
— Na verdade, estava falando de você. Gostei de conversar com você. Se quiser falar mais sobre sua sentença de morte, estou aqui.
A menina não tinha meias–palavras. Ozob gostava disso. Parou num boteco para comprar uma Nux–Cola (a vontade parecia mastigar sua mente) e recebeu mais uma mensagem antes de responder:
— Temos outra missão hoje. Vamos agir de novo, antes que o DAA saiba o que os atingiu.
— Isso dá dinheiro?
— Dá coisa melhor que dinheiro.
— Você vai dizer que vão de novo espalhar a música do seu messias com dentes podres?
— Hoje vamos a uma igreja com pregação antialienígena. Subsidiária da Loykos S.A.
Era uma corporação que vendia comida processada. Mais especificamente, carne de alienígena.
— O que vão fazer?
— Vamos invadir a igreja, é claro! Vamos ver o horror nas caras daqueles fanáticos alienfóbicos. Se quiser ir conosco, vai ser divertido.
— Acho que preciso de outro tipo de diversão, garota.
— Tudo bem. Mas, se mudar de ideia, encontre–nos às 7 no Distrito Eclesiástico. Gostei de conversar com você.
A imagem de California se apagou da mente dele. substituída por mais interferência da Nux–Cola em suas conexões neurais. O EgoBliss mais uma vez o lembrou que aquela amizade era patrocinada pela marca de refrigerante, fora possibilitada pela rede social e tinha sido aprovada pelo Conselho de Ética das Relações Humanas, outro órgão operado em conjunto por várias corporações.
Ele comprou outra Nux–Cola e notou que estava sorrindo.”
Leonel Caldela & Deive Pazos — Ozob vol. 1: Protocolo Molotov, 2015
Ozob em ilustração de Marco Teixeira |