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quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Conto: Sob as brumas repousa o inominável




Olive caminhava apressado por entre a neblina e os prédios de Misttown. Era pouco mais que duas da tarde, mas o entulhamento das vias, lotadas de carros e pedestres, combinado com a parca luz que chegava ao chão, filtrada pela onipresente cerração e pela poluição, o faziam ter a sensação de que era bem mais tarde — talvez seis ou sete da noite. E ele agradeceria se fosse; a ansiedade pela noite nublava a plenitude do dia. Há quanto tempo ele esperava por aquela noite? Teve vontade de correr, mas uma revoada de pássaros o assustou.

“Pidgeys por todos os lados”, pensou, vendo os pássaros marrons sumindo na neblina. “Transmitindo doenças e emporcalhando estátuas e telhados… e todo o resto.”

Ele se lembrava de quando as coisas não eram assim. Os animais eram puros; suas populações eram controladas… e eles nem eram chamados assim ainda, genericamente, animais. Haviam muitos que também se lembravam, assim como ele — mas esses muitos eram massa, não tinham opinião como ele. Estavam domados pela mídia, doutrinados, estupidificados. Olive se lembrava de quando a nova ordem entrara em vigor — e isso, para ele, significou muito mais do que para os outros, para os não–treinadores. Ele se lembrava de quando fora obrigado a abandonar seus amigos, escolhendo apenas um; ele se lembrava quando esse um, seu primeiro, um rapidash, definhara até o fim. Todos os que eram treinados definharam, e os que nunca foram se distanciaram cada vez mais de suas origens elementais, se animalizaram cada vez mais…

Olive se lembrava do nome do seu rapidash, e que era um nome que ele jurara nunca mais pronunciar.

Mas a noite chegou, finalmente. Olive parou de andar erraticamente e dirigiu–se ao subsolo da antiga fábrica CryTech. Os neons da cidade tingiam a neblina de laranja e vermelho, naquela rua, e ele venceu disfarçadamente a cerca meio destruída e adentrou as ruínas. Depois do primeiro lance de escadas para baixo, um grandalhão armado o impediu. Ele mostrou sua insígnia e sua passagem foi autorizada. A porta acústica lhe foi aberta. Olive entrou num andar lotado de pessoas, luzes e alegria. Aquele lugar era apenas um único e gigantesco salão, com o piso transformado em degraus descendentes, com uma cobertura rústica de cimento grosso, até o centro do salão, já a metros abaixo dele, onde o evento iniciava. Olive buscou a mesa de juízes e informou sua presença. Como seria o último competidor da noite, no evento principal, apenas circulou por ali. Recebeu muitos cumprimentos, felicitações e abraços. Acompanhou com pouco interesse a primeira competição, de um menino contra uma menina, entre um rattata e um weedle, visivelmente iniciantes — no entanto, era naqueles jovens treinadores que estava o futuro da Liga de Kanto.


A segunda competição da noite, contudo, jamais aconteceu. Todos ouviram os tiros, e alguns se desesperaram — os mais jovens. Os mais velhos —e os veteranos, como ele— sabiam que um dia isso aconteceria. Olive não se desesperou, assim como os outros veteranos: sabia que isso um dia aconteceria.

A polícia irrompeu pela porta acústica de fuzis em punho, gritando ordens para que todos se juntassem a um canto. A comandante da operação checou o nome de todos os treinadores na mesa, e eles foram chamados, um a um. Todos foram presos, e suas pokébolas confiscadas. A comandante chamou pessoalmente por Olive Wolfgang. Quando se viram frente a frente, Olive percebeu que talvez tivesse mais do que o dobro da idade dela. Ela nunca o compreenderia.

— Você é o lendário Bruteroot — disse ela, involuntariamente demonstrando certo respeito na entonação.

— O próprio — respondeu Olive. Sem que a policial pedisse, ele entregou–lhe as três pokébolas, contendo um ninetales, um arbok e um golduck. Todos inominados.

— Você está preso, e será autuado por participação em rinha ilegal e tratamento cruel de animais. Tem algo a dizer em sua defesa?

— Em minha defesa, não — disse Olive, incrivelmente (a si mesmo) tranquilo. — Só tenho algo a dizer a meus companheiros — acrescentou, e como a policial não respondeu, Olive ergueu o olhar para os outros treinadores algemados. — Não deixem morrer a chama — disse, em voz alta. — Eu cheguei ao topo, e vocês também poderão, um dia.

— Já chega — disse a jovem policial, virando–o e algemando–o. — À sua lista de autuações, será acrescentada a incitação à ação ilegal.

Ela, no entanto, não foi ouvida por Olive a pouco menos de um metro de si, tamanha era a algazarra que ele incitara aos companheiros, que já começavam a ser golpeados pelas coronhas dos fuzis.

*

O Ministro da Agricultura esperou na antessala do Presidente enquanto era anunciado. Tamborilava na mesa vazia da secretária, observando as imagens holográficas na parede da porta do gabinete — a posse do Presidente; o Presidente com sua mulher e o casal de filhos; o Presidente com o nidoking da família em uma comemoração do aniversário de Cerulean, em meio a uma explosão de papel colorido picado — e a figura do governante sempre séria, bem diferente da que ele encontrou quando foi permitida sua entrada no gabinete.

— Boa tarde, senhor Presidente — sorriu o Ministro, cumprimentando–o com uma mesura. — Vejo que recebeu boas notícias.

— Excelentes, caro Yoshiaki — disse o Presidente, chegando a se levantar para dar a mão ao antigo amigo. — Conseguimos, finalmente, pôr um fim à Liga de Kanto!

— Não diga…!

— Encontramos o lendário Bruteroot e toda a corja reunidas para a final, debaixo daquela antiga fábrica relacionada àquele tempo das rinhas, a CryTech. A final, Yoshiaki; os surpreendemos na final! Você se lembra da CryTech?

— Sim, senhor Presidente — disse o ministro Yoshiaki. O ministro só não conseguia sentir tanta alegria, porque, quando era criança ainda, tantas décadas atrás, sonhava em ser um treinador… ao contrário do Presidente, que, certamente, nunca sentira o “chamado”. No entanto, logo a lei foi mudada, e o sonho foi esquecido.

— Mas diga–me: qual a má notícia que vem me trazer, para que essa primeira seja balanceada pela lei natural de todas as coisas? — perguntou o Presidente.

— Infelizmente temo que sejam, de fato, más notícias — disse o Ministro da Agricultura. — As plantações da zona rural de Lavender estão sendo devastadas por caterpies… pela mesma infestação que vem subindo pela Rodovia Litorânea, desde Fuchsia. — “As antigas Rotas 12 a 15”, pensou, certo de que sua nostalgia fora ativada pela notícia da descoberta da liga clandestina.

— Pensei que estivéssemos lidando com isso — disse o Presidente, sentando–se, e tirando o Ministro do mundo passado. — Com aquela medida de controle biológico usando as aves, por exemplo.

— De fato, senhor Presidente… — O Ministro suspirou, e tamborilou de leve a mesa do governante. — Acontece que eles… todos eles… Pidgeottos e fearows migraram em massa para as ilhas Seafom e estão causando danos à pesca de lá… E os swellows vindos de Hoenn… bem, senhor Presidente… eles invadiram Cinnabar, e também estão…

— Mas por todos os deuses, como eu não fiquei sabendo disso antes? — perguntou o Presidente. — Eu ouvi sobre as perdas nas plantações, mas não sabia que era por isso!

“Porque estava surdo a tudo o que não fosse a liga clandestina”, pensou o ministro.

— Estava tudo nos relatórios, senhor Presidente — disse, apenas.

— Muito bem. Não é a primeira vez que enfrentamos um… como vocês o chamam?

— Desequilíbrio biológico, senhor Presidente. De fato, não é a primeira vez. Quando as fundações de Vermillion foram abaladas pela infestação de digletts, nós aplicamos aquele veneno especial, mas essa solução não é… bem, ela não é indicada a esse caso. Os testes comprovaram que uma situação adversa força a evolução das caterpies, e… bem… além das butterfrees depositarem muitos ovos, que gerarão novas caterpies, e aumentarem em muito os casos de crises alérgicas na população dos arredores… bem, os predadores naturais delas são os scythers e as spinaraks, e dessas infestações não nos livraríamos sem muitos problemas de tamanho… considerável.

— Você não está exagerando, Yoshiaki? — perguntou o Presidente, estreitando os olhos. — Os scythers estão praticamente extintos, e há muitos anos não temos notícias de spinaraks ou ariados por aqui. As lavouras, ao contrário, são problemas urgentes.

— Senhor Presidente, a dificuldade que temos é que…

— Já temos esse veneno, esse pesticida para as caterpies? — interrompeu o governante.

— Temos, senhor Presidente. Tenho, contudo, que reiterar minha preocupação com essa aplicação em tão larga escala.

— E eu o ouço, Ministro. No entanto, cabe a mim a decisão, assim como suas consequências. Faça com que apliquem o pesticida.

— Muito bem, senhor Presidente. Será aplicado.

*

Günter Fierce viu logo pela manhã os modernos drones, com as letras PCBL (de Pest Control for a Better Life) desenhadas em vermelho sobre seus corpos brancos de plástico. Eles vinham da direção de Fuschia como um enxame pelos céus, sem ruído, apenas um monte de bolotas brancas flutuantes brilhando no sol daquele dia sem nuvens.

Como Günter viu os drones no meio do ato de sair da copa para a varanda, ficou paralisado entre a abertura da porta de tela e o fechamento da porta de madeira com vidro. Isso chamou imediatamente a atenção do filho e da filha, que sempre levavam bronca do pai quando as deixavam abertas ao mesmo tempo e permitiam assim que os insetos entrassem. O pai ainda olhou para eles, meio abobado, como se quisesse se certificar, ao ver os filhos, que ainda estava no mundo real. Assim que resolveu sair, o menino e a menina olharam um para o outro — sabendo exatamente o que significava o assentimento não dito — e largaram o café da manhã.

Quando saíram na varanda, ficaram tão estupidificados quanto seu pai. Milhares daquelas bolas brancas e brilhantes cruzavam silenciosamente o céu, a menos de vinte metros do chão, rumo à floresta. Nenhuma delas se detinha, nenhuma mudava o curso; todas ignoravam os três ali. Ou, ao menos, assim parecia.

— O que é isso, pai? — perguntou a menina, mais velha.

— Não sei — respondeu o pai, com a testa enrugada, pensando, sem retirar os olhos dos drones. — Mas coisa boa não pode ser.

— Queria que a mamãe visse isso — disse o menino, mais novo.

A confusão de Günter, no entanto, não durou muito mais. Assim que o primeiro drone alcançou a orla da floresta, sua face interior (seu ventre?) se abriu, e dele vazou um pó laranja que devia ser muito fino, porque se espalhou incrivelmente pelo ar. Logo os outros drones começaram a fazer o mesmo, em pontos diferentes, e a retornar na direção da cidade grande.

— Corram para dentro — disse Günter, finalmente retirando o olhar preso aos drones e voltando–o às crianças. — Corram e fechem todas as janelas. Não saiam mais aqui fora!

— O que é aquilo, pai? — repetiu a menina, enquanto o mais novo corria para dentro.

— Veneno — disse apenas o pai. — Ande!

— O que o senhor vai fazer? — perguntou, vendo o pai descer os degraus da varanda.

— Vou recolher os animais — disse, e A menina sabia que por “os animais” ele se referia ao taurus e as duas miltanks, os únicos que lhes restaram depois que os caterpies destruíram quase toda a pastagem.

*

De fato, o veneno aplicado foi efetivo contra as caterpies. E contra uma importante parte da fauna microbiológica, na qual o efeito do pesticida não fora testado — o que ocasionou a morte de boa parte dos insetos de pequeno porte e, consequentemente, de muitas espécies vegetais que dependiam de sua relação simbiótica com esses insetos. Os scythers e as spinaraks de fato, também, não reapareceram, mas a principal fonte de alimentação de zubats também pereceu com o veneno e eles migraram em peso para as cidades e vilas próximas, levando as doenças das quais eles se tornaram vetores nos últimos tempos. Uma delas, inclusive, também foi transmitida aos pidgeys, e depois de uma leve mutação, aos humanos.

Com a fuga dos zubats das florestas e matas litorâneas, a população nativa de ekans e hoothoots — seus predadores naturais —, já tão pequena, praticamente se extinguiu. Isso fez com que os predadores naturais desses, as grandes aves, como as fearows, simplesmente desaparecessem. Assim, em dez anos, as florestas litorâneas entraram num processo inevitável de degradação, visto que seus principais agentes mantenedores e polinizadores haviam colapsado.

Mas esse ainda não foi o maior problema que os moradores da costa leste de Kanto enfrentaram.

*

Ly Fierce caminhava perdida pela neblina de Misttown. Tudo estava perdido na neblina de Misttown, todo mundo estava perdido nela. Caminhava tocando a parede dos prédios, assim como todos agora faziam. Não que fosse arriscado se perder da parede e acabar atropelada na rua; já não havia trânsito. Já não era possível dirigir em Misttown; já não era possível enxergar os semáforos; já não era possível enxergar os cruzamentos. Ly andava tocando as paredes porque assim podia topar com alguma loja mal trancada e roubar algo para comer antes que fosse vista. Tinha um irmão menor para alimentar, e nenhum dinheiro. Morava de favor, mas o favor alheio tinha limites. E aquele dia estava passando em branco.

O suor grudava sua roupa no corpo. Ainda que fosse, realmente, neblina, aquela cortina espessa mais parecia fumaça, por causa do extremo calor dos últimos tempos. Desde que Ly viera para Misttown —enxergando nela as oportunidades que a cerração lhe daria, como, de fato, dava—, a temperatura só aumentava na costa leste, os animais sumiam cada vez mais, e a zona rural começava a se tornar um deserto. Os especialistas disseram que aquele processo poderia ser natural, mas Ly —assim como seu pai, antes de morrer— estava certa de que esses especialistas apenas defendiam as ações equivocadas do governo. Até que ponto eles estavam certos —Ly e seu pai ou os especialistas— agora não fazia diferença; opiniões só faziam parte do passado de Ly Fierce.

Andando rente à parede, Ly deu com uma vitrine de doceria. Quase colou o rosto na vitrine para olhar dentro da loja. Naturalmente, o sistema de exaustão a mantinha com a atmosfera livre. No momento, não havia ninguém lá dentro; a vendedora ou balconista deveria estar nos fundos. Era pouco provável que a fechadura estivesse destrancada, mas sua obrigação era tentar. Que os deuses fossem louvados; estava! Ly abriu–a o mínimo, silenciosamente, o suficiente para que ela não ativasse o alarme da entrada. A neblina escorregou pela fresta mínima e, em questão de instantes, ocupou o interior da loja.

Ly invadiu, ativando o alarme, ao mesmo tempo em que ouviu a interjeição de espanto da balconista. Se pensava que o último cliente havia deixado a porta meio aberta ou já conhecia o tradicional golpe, Ly não esperou para descobrir. Esgueirando–se em meio à bruma, abraçou dois bolos da vitrine e caiu fora muito antes que a porta fosse cerrada atrás dela.

*

Billy Fierce sacudiu a irmã, que dormia encolhida sobre o colchão de casal deles, no canto mais quente do porão da tecelagem clandestina. Ly demorou a despertar, e o jovem garoto se impacientava mais, até que deu um pontapé na canela da moça.

— Mas que diabos… Que horas são? Está cedo…

— Você precisa ver uma coisa, Ly — disse o menino. O tom de sua voz mostrou a ela que, daquela vez, não era brincadeira.

Ly sentou–se com as pernas cruzadas e esfregou os olhos. Prendeu os cabelos castanhos num rabo–de–cavalo e encarou o irmão, de pé à sua frente.

— O que foi, Billy? — grunhiu ela. — Que horas são?

— Cinco e pouco. É lá em cima.

Os olhos do menino estavam estranhos; pareciam perdidos, arregalados.

— Você está me assustando, Billy. — E essa sensação só aumentou, porque ele não respondeu; apenas ficou ali parado, olhando para ela. Ela se levantou e o menino continuou parado, só olhando, e ela percebeu que sua respiração estava irregular. — Onde, Billy?

O menino apontou para cima.

Ly meneou a cabeça e calçou os chinelos. Pegou metade do último pedaço de bolo de chocolate e colocou na boca de uma vez (não era um pedaço muito grande, por sinal). Meneou a cabeça e começou a andar em direção à escada, mas o irmão não o acompanhou. Suspirando, ela voltou sobre seus passos e pegou o menino pela mão, arrastando–o para cima.

A escada dava para os fundos da tecelagem, saindo na lavanderia, um cômodo minúsculo e com cheiro de mofo. Não que o cheiro da cidade fosse muito melhor. Automaticamente, Ly olhou pela porta de vidro da pequena área dos fundos onde ficava a lixeira e viu a parede oposta à porta. Caiu em si depois de dois passos. Olhou para trás, intrigada, e depois para o menino. Leu no rosto dele a expressão “é disso que eu estou falando”. Ly cogitou voltar e olhar através daquela porta, mas não veria muita coisa mesmo, de tão apertado que era aquele espaço. Arrastou o menino com ela, com alguma resistência. Quando chegou à janela, entendeu completamente o medo do irmão. Um arrepio desceu e depois subiu de novo pela sua espinha. 

Ela viu os prédios ao redor, e suas paredes mofadas e enegrecidas. Viu as árvores atrofiadas. Viu o céu, e a luminosidade laranja do amanhecer no horizonte. E viu as dezenas de pessoas nas ruas, embasbacadas, que nunca tinham visto aquilo. De fato, quem nunca tinha saído das cercanias de Misttown jamais havia visto mais do que quinze metros à frente. Nem à frente, nem ao futuro, pensava Ly. E naquele momento achou que a cidade era ainda mais feia do que ela imaginava.

“Estamos ferrados”, pensou ela.

— O que tá acontecendo, mana? — perguntou o menino. Com dez anos, provavelmente já não se lembrava muito bem de quando vivia no campo e via o mundo até o horizonte.

Ly chegou a abrir a boca para responder, mas o prédio começou a tremer violentamente. A moça sabia que tinha que dizer ao irmão o que fazer, que era sua obrigação, mas não fazia ideia do que fazer quanto àquilo. As pessoas na rua também estavam desesperadas. O tremor aumentou, as coisas começaram a cair de cima das mesas e bancadas, e Ly percebeu que não podia ficar ali dentro.

— Vamos, vamos pra fora, anda! — gritou para o irmão.

Desceram tropeçando as escadas; no meio do caminho Ly maldisse a escolha automática por sair pela porta dos fundos, que dava para o porão — como não podiam abrir a porta da frente e expor a empresa clandestina, se acostumaram a nunca sair pela porta da frente.

Enquanto estavam pelo meio do porão, desviando de móveis caídos, tropeçando, erguendo um ao outro, o teto caiu sobre eles… e essa não era a pior coisa que lhes podia acontecer.

*

« Estamos acompanhando a destruição em tempo real, daqui do helicóptero », dizia a repórter, segurando com uma mão o headset e com a outra a barra da aeronave, ora olhando para a câmera ora para fora, o vento forte entrando pela porta aberta e fazendo seu cabelo chicotear ao redor de sua cabeça. « O monstro que surgiu na zona rural de Misttown agora devasta a cidade, cuspindo, vomitando, é difícil definir, uma nuvem de fogo e eletricidade, parecida com uma erupção vulcânica, além de estar destruindo fisicamente os prédios… seu tamanho é inacreditável… apesar de a lei proibir, é difícil definir esse ser meramente como um animal… Vejam, ele agora acaba de derrubar a torre da All–in–One Mobile Communications, derrubou ela em cima de outros prédios, tudo volta a sumir, mas dessa vez em meio à fumaça, ao invés da neblina… Especialistas antigos… bem, especialistas em pokémons antigos —vou usar a palavra porque agora ela me parece mais apropriada—, dizem que esse animal, esse monstro, esse pokémon se parece, ao menos visualmente, como uma mistura das agora extintas e lendárias espécies de salamence e groudon… e que o sumiço da neblina deve estar ligado ao seu aparecimento, ou despertar, e… esperem, ele parece… Pelo amor dos deuses, ele parece estar olhando para o helicóptero…! Diga para o piloto mudar o curso, ele vai nos— »

A tela ficou por cinco segundos exibindo um azul monocromático e depois cortou para o âncora do jornal. Ele olhava estático para a câmera, visivelmente incapaz de falar. Depois de um tempo, piscou os olhos e involuntariamente levou a mão ao ponto no ouvido. Retirou–a rapidamente quando viu o que fazia.

« Precisamos chamar os comerciais por um momento », disse apenas, com a voz sumida, e a vinheta tocou.

— Está assim em todos os canais — disse o Ministro da Defesa, mudando de emissora. A outra mostrava em looping gravações amadoras dos momentos em que o monstro surgira no horizonte em Misttown, momentos depois do sumiço da neblina, e diversos vídeos (alguns subitamente interrompidos, uploads automáticos na nuvem) das diversas destruições causadas pelo colosso e de quando ele ficou ainda mais furioso quando o exército começou a descarregar inutilmente seu armamento contra ele.

— Desligue — disse o Presidente.

O Ministro desligou a TV.

O Presidente ficou por muitos instantes com as mãos cruzadas, apoiadas na mesa, olhando para baixo. Olhava, na verdade, para o seu interior, para a opinião pública, para a imprensa, para sua reeleição.

Olhou para todos esses pontos e só conseguiu enxergar uma única coisa.

— Precisamos de um especialista — disse.

*

Ly Fierce passou quinze dias na UTI, e mais um mês no quarto. Quando foi liberada, não tinha para onde ir. Deixou uma flor no túmulo de seu irmão e deixou–se esquecida num café, usando um dos vales que o governo dera aos desabrigados. Só lhe restava dormir junto aos outros, no pedaço que restava do estádio, esperando o resto do dia acabar.

Quando se preparava para ir embora, viu o balconista colar um cartaz vermelho e branco, chamativo, no quadro de avisos. Foi ver; talvez fosse alguma medida oficial em relação ao monstro que sumira de vista ao se entocar novamente nos subterrâneos pouco antes de chegar a Fuschia. E era.

“Essa é a sua chance de fazer a diferença!”, dizia o cartaz em letras garrafais. “Junte–se aos oficiais Olive ‘Bruteroot’ Wolfgang e Alice Ketchum no primeiro programa de treinamento oficial para a criação da Divisão de Defesa Zootécnica do Governo de Kanto. (Soldo, alimentação e moradia para os selecionados.)”

— É só uma questão de tempo até voltarem com as Ligas — sorriu, nitidamente satisfeito, o velho balconista.

Ly olhou para fora, para a cidade destruída, para a roupa que vestia e não era dela, para o café decadente, para sua vida. Aquela era a única opção que lhe restava, e ela iria agarrá–la com tudo o que tinha.

Iria deixar orgulhosos o pai e o irmão, e algo lhe dizia que, de onde estivessem, em breve veriam o nome dela ao lado do daqueles dois oficiais do cartaz.



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