Você sabia que pode dar uma cara, uma aparência, um caráter completamente diverso para o seu texto, dependendo da forma como você o escreve? — dependendo do enfoque que você dá à cena? — das palavras que você usa?
Consideremos um personagem — James. Ele precisa entrar num cômodo — um quarto — escuro, mas ele tem medo do escuro. Não é uma criança, mas... acontecimentos recentes lhe dão motivos para temer esse escuro. Existe um enfoque correto para essa cena? Depende do seu livro. Da sua história. Do que você quer passar. Alguns exemplos:
1. A cena escrita num estilo seco, direto, apreciado por alguns — eu inclusive. A emoção da cena dependerá do leitor, das experiências que o leitor teve em situações semelhantes. Quem partilha desse medo o sentirá, e quem não partilha achará o personagem um babaca — e ambas as situações ajudam a defini-lo para o leitor, que completará o que não é dito com seus próprios sentimentos.
Com passos lentos, James chegou ao quarto. Estava escuro, e não havia sequer uma fresta na janela que lhe permitisse distinguir qualquer coisa lá dentro. O interruptor ficava perto da cama, longe demais, e também não estava visível. James respirou fundo, seu coração acelerou. Ensaiou um primeiro passo dentro do espaço insondável, mas recuou. Não conseguia entrar, mas não podia simplesmente fugir. Puxou mais uma vez o ar para dentro dos pulmões, sentindo o coração pular... e entrou.
2. Outra possibilidade para a mesma cena: Gosta de humor britânico, como o de Terry Pratchett, Douglas Adams, entre tantos outros? É possível transformar o medo de alguém num humor nonsense ou negro? Claro que sim!
James havia prometido a si mesmo que nunca mais faria aquilo de novo — o que o levou diretamente para lá, um mosquito estúpido rodando em volta de uma lâmpada que o mataria. Por que ele não podia simplesmente deixar tudo para lá, ou para outros, ou para depois, quando estivesse se sentindo mais corajoso? Ok, tudo bem, isso significava que morreria esperando. Na porta do quarto, James viu — ou não viu, no caso — o escuro; pelo menos, se ele se borrasse, ninguém poderia ver. Maldizendo todos os ancestrais que se lembrou ter (e que não se lembrou também, e esses mais ainda, porque se não se lembrava é porque nunca tinham feito nada que pudesse encorajá-lo agora), ele bufou mais um pouco, tentando respirar, e finalmente se jogou naquele escuro que zombava dele. E James realmente não viu quando se borrou.
3. Pobre James. E se o fizermos entrar no quarto escuro mais uma vez, mas dessa vez botando medo não só nele, mas no leitor também? Lovecraft sabia fazer isso como ninguém, e você também pode tentar.
O piso velho rangeu quando James se aproximou do quarto mergulhado nas trevas. O mundo escurecia cada vez mais; cada passo arrancava-lhe um pouco mais de seu autocontrole; cada rangido evocava a visão de um demônio que ria de sua fraqueza humana. A escuridão transbordava para fora do cômodo e subia por suas pernas, por seus braços, por sua mente, fria como a morte, ou era a morte em si. Dolorosa e lenta, gelada, minando seu sangue e sua força de vontade, convidando-o para a incursão no desconhecido de suas entranhas. Às portas de tudo o que mais temia, James sequer tinha coragem para fechar os olhos, e rezar já lhe parecia tão ineficiente quanto esperar que voltasse a existir qualquer tipo de luz no mundo. Nada podia salvá-lo naquele momento, e ele cedeu ao chamado, cedeu à tentação de mergulhar no covil do inimigo, e entregou sua alma ao que quer que estivesse ali e quisesse levá-lo para os seus domínios.
4. Não satisfeitos com o destino de James, que teima em entrar nesse quarto, podemos também entrar diretamente em sua cabeça, num fluxo de consciência que mostra mais sobre a visão que o personagem tem do mundo do que da realidade em si.
O corredor não me mostrava qualquer escapatória: terminava naquele quarto, morria naquele quarto que eu não podia ver mas que me via, que me chamava enquanto eu lutava contra ele, mas uma luta desigual, uma luta onde se enfrentam um magro vira-latas e um pitbull, uma luta que não dá escolha ao destino sobre qual dos dois lados deveria agraciar com a vitória. Era uma luta-sem-luta, uma derrota anunciada, onde o vira-latas quer apenas provar que pode lutar, ou pelo menos que pode entrar no ringue e olhar de cabeça erguida para o oponente, e jogar-se contra ele apenas torcendo para que a derrota lhe seja justa, lhe seja honesta, lhe seja indolor e rápida, que seu oponente possa apenas derrubá-lo no chão sem tripudiar sobre ele, ou sobre o que restar dele, sobre seu cadáver. Aquela escuridão me dizia todas essas coisas, e eu, incapaz de lutar contra ela, apenas ouvia, ouvia e sentia, e nada pude fazer quando chegou o momento de me entregar a ela e descobrir como seria minha inevitável derrota.
Cada uma dessas abordagens trata do mesmo personagem e do mesmo medo que ele tem, mas não é sobre isso o que tratamos aqui — é sobre como o escritor, que é você, que sou eu, que somos nós, queremos passar esse personagem e esse medo e essa história ao leitor. É sobre o quê você quer quer o leitor sinta quando lê o seu livro.
A leitura é feita de sentimentos, na verdade, mais do que de enredos mirabolantes. Claro que, tudo encaixado da forma correta, apenas engrandece a história que se quer contar, mas o quê o leitor vai sentir quando a ler é que será lembrado depois de passar pelo filtro dos anos.